“MÃE AOS 11 ANOS? QUE INCONSCIÊNCIA! QUE BARBARIDADE!”

Isabel Feio, Maria Capaz, 2015.02.06
O número de pacientes na sala de espera da Maternidade Alfredo da Costa ultrapassava o aceitável. Após consultar a agenda, dei indicação para chamarem a primeira paciente do dia. Assim que abri a porta do consultório vi uma miúda de olhar cabisbaixo acompanhada de uma senhora que se apresentou como sendo sua mãe. Ambas de etnia africana. O que vos vou contar passou-se há mais de 15 anos.
Ainda antes que eu tivesse oportunidade de cumprimentar a filha, já a mãe se apressava a falar sem dar qualquer espaço a um primeiro contacto entre mim e a Maria – nome que utilizarei por ser facilmente identificável entre tantas outras. Lembro-me vagamente das palavras da mãe – ecoavam em som de fundo em ruído de baixa frequência. Enquanto isso, continuei em busca do olhar da Maria.
O ruído de fundo continuava a impor-se entre nós. Baixei-lhe o volume e pedi-lhe para se manter em stand-by na sala de espera. Mas não. Puxou da antena e continuou a transmitir sem mudar de frequência: “Vou entrar com a minha filha! Tenho de ser eu a falar senão a Doutora não vai perceber o que é preciso fazer! É uma situação muito urgente, Doutora!”.
Engelhei a testa e convidei-a a desligar o som. Pedi-lhe para deixar a coluna em cima da cadeira da sala de espera. Sem tirar a ficha da tomada, continuou: “A minha filha foi violada à noite num jardim e ficou grávida. Já fui ao serviço de Assistência Social da Maternidade para que faça o desmancho. Disseram-me que não era lá que resolvia o problema e que teria de vir aqui a uma consulta para o poder fazer”.
A Maria mantinha-se sentada com o olhar preso ao chão. Como se procurasse nele um buraco onde se pudesse refugiar do medo, refugiar do ruído que tanto incomodava. Encarei de novo a mãe que percebeu no meu olhar o desenho de uma cabine de som onde a sua música não seria audível. Deixei-a em difusão ao fundo do corredor.
Fechei a porta do gabinete e o ruído – que até então ocupava todo o espaço – deu lugar a um silêncio apenas interrompido pelas lágrimas que deslizavam pelo rosto da Maria até serem amparadas pela sua pequena língua. Uma língua que ambas percebíamos sem necessidade de usar palavras. Uma nitidez que a linguagem oral não permitia. A mão e o olhar serviram de intérpretes. Segurei-lhe a mão. Mantivemo-nos assim uns instantes até a Maria conseguir levantar o olhar em direcção ao meu. Entrámos numa esfera só nossa. Sem o ruído habitual que a atormentava.
“Posso ajudar-te, Maria?”, traduzi o que o seu olhar assustado me pedia. “Se quiseres, podes responder com o olhar. Basta que o baixes sempre que a resposta for “sim” e que o levantes se a resposta for “não”. Aceitas?”, baixou o olhar. Estava assim iniciada a travessia.
“Maria, vi na tua ficha de inscrição que tens 11 anos. Confirmas?”, o seu olhar para baixo indicou-me um “sim”. Na verdade, comparando o desenvolvimento do seu corpo com o das miúdas caucasianas da sua idade, dificilmente alguém lhe daria menos de 16, 17 anos. “Será que preferes manter-te em silêncio sobre o que aconteceu?”. O olhar manteve-se em baixo, no “sim”. Era porém crucial perceber se o que a mãe contava era ou não verdade, bastava isso. Os contornos eram secundários. Pelo menos nesta fase.
“Maria, posso assumir que é verdade o que a tua mãe contou?”, lentamente o seu olhar foi levantando em nítido esforço; como se o “não” tivesse o peso de uma rocha presa à alma. Assim que o ergueu, deixou-o cair. Estava encontrada a distância que separava a verdade da Maria da mentira da mãe.
Os minutos passavam entre lágrimas de medo e outras tantas de raiva. Mantive-a segura pela minha mão de modo a evitar a queda no abismo para onde a empurraram sem qualquer hipótese de fugir.
Senti que estava chegado o momento de parar a consulta para que não se sentisse invadida, por mais alguém, no seu tempo e privacidade. “Maria, que achas de nos voltarmos a encontrar daqui a uns dias? Posso marcar nova consulta?”. “Sim”, respondeu. Foi a primeira vez que ouvi a sua voz. Uma voz tão doce quanto o olhar e simultaneamente tão frágil quanto este.
“Combinado, Maria. Vou escrever o dia e hora neste cartão e cá estarei à tua espera. Farei o possível para que te sintas apoiada em tudo o que precisares. Sem pressas nem pressões.” Despedimo-nos e só depois abri a porta para o corredor onde a esperava o ruído estrondoso que a iria acompanhar até à próxima consulta.
Na vez seguinte já trazia um olhar diferente: o olhar de quem muito me tinha a dizer desde que não tivesse que me dizer muito. A mãe, pelo contrário, insistia em querer dizer muito sem nada me dizer. Apenas a pressa de me querer fazer acreditar numa história mal contada. Tocava viola a solo. Em Dó. Um dó desafinado. Desatinado. Aos poucos meteu a viola no saco e seguiu. Deixou de tocar em Si mas mantinha a Maria presa na tecla de Ré. Sem Sol.
“Parece-me que ambas têm verdades e vontades diferentes, Maria. Mas acredito em ti. Serás tu a dizer o que gostarás que aconteça, o que queres e não queres para ti.”
Nisto o silêncio é interrompido por uma voz trémula: “Nem os gatinhos se afogam…”. Desatou a chorar ao mesmo tempo que olhava para mim como que a pedir um abraço de compreensão, suficientemente contentor do seu desassossego. “O companheiro da minha mãe…”, soluçou. Percebeu no meu olhar e no apertar da minha mão contra a sua, que entendi a mensagem.
Qual guarda-costas, peguei em todas as minhas armas e fui à luta pela vontade da Maria. À luta por uma vida. Na realidade, duas. Assim estivesse ela preparada para o que queria.
Para trás ficava a violação pelo padrasto. Pela frente o tempo que restava de gravidez.
As palavras, o tempo e as consultas foram passando entre nós. A força, essa, ia crescendo a par. A barriga também. Éramos três partes a uma só voz. Uma voz distinta de (quase) todas as outras. Corríamos contra o tempo. Já a capacidade maternal da Maria corria a favor dela e do bebé. Dos dois.
As vozes avolumavam-se a favor do “não” à maternidade da Maria: “Que inconsciência! Que barbaridade! Uma criança de 11 anos não tem capacidade para ser boa mãe! Tem de se interromper a gravidez ou dar o filho para adopção! Há muitos casais à espera de adoptar um bebé e dar-lhe tudo o que ele precisa!”, afirmavam em uníssono a mãe e vozes acólitas.
A elas juntaram-se mais uns quantos “pareceres credíveis”, diziam-me. Nada disso me demoveu de seguir em frente com a vontade da Maria após avaliar a sua capacidade maternal. Já os autores dos ditos “pareceres credíveis” nem nunca a tinham visto. Muito menos ouvido. As únicas ondas de rádio que captaram vinham da voz da mãe.
Apesar do número crescente de vozes contrárias, chegou-me uma que se impôs perante todas as outras: a voz de Coimbra de Matos – Presidente da Sociedade Portuguesa de Psicanálise e meu grande Mestre. O seu parecer confirmou e reforçou o meu. Tive-o e foi decisivo.
Os meses passaram e as restantes vozes foram perdendo fulgor. Já a nossa mantinha-se determinada e focada num único sentido: a vida conjunta entre a (boa) mãe e o filho desejado. Um filho feliz por não ser afastado da mãe. Mãe é mãe. E quando há possibilidade de a termos connosco, amando-nos, desejando-nos, abraçando a nossa vida, nada nem ninguém a substituirá. Não há melhor colo nem melhor olhar do que o de uma mãe que deseje verdadeiramente um filho…
Passados nove meses, o bebé nasceu e, com ele, o sorriso da Maria. Duas vidas que trocavam vida entre si. Apenas uma coisa os separou: o bebé nasceu com citomegalovirus – o que fez com que permanecessem afastados, por alguns dias, em enfermarias contíguas. Numa delas os bebés que apresentavam uma patologia que os obrigava ao afastamento da mãe. Na enfermaria ao lado, as mães mantinham a esperança que tudo corresse bem.
Numa das minhas visitas diárias ao bebé e à Maria, a enfermeira-chefe chamou-me e disse: “Doutora Isabel, há tantos anos que trabalho na Maternidade e nunca vi uma mãe que tão bem distinga o choro do seu filho de todos os outros!… As outras mães levantam-se sempre que ouvem o choro de um bebé receando que seja o seu. A Maria só se levanta quando é o filho. Reconhece-o sem hesitar”. Também eu sorri. Sorri com a sensação de dever cumprido.
Assim que o bebé recuperou, e tal como já estava combinado com a Maria, foi ao seu colo para uma instituição de apoio a mães menores e sem ter de deixar de estudar. Seguiu feliz. Feliz por estar perto do filho e longe do ruído. Longe também de olhares preconceituosos e saberes duvidosos. Para trás ficou o terror com que se confrontava diariamente num silêncio desesperado e sem qualquer defesa.
Pela frente uma vida a dois. Uma vida feliz com o filho que tem hoje mais idade do que a Maria quando a conheci. Um sorriso franco que os liga entre si e ao melhor que a vida tem para lhes dar.
Cada caso é um caso. Não há dois iguais. Há que estar sempre receptivo a avaliar cada um deles por si. Sem pré-conceitos. Sem pré-julgamentos a atrapalhar a lucidez. Apenas vontade de dar voz à verdade, não cedendo a interesses alheios nem a atitudes que, essas sim, são da maior inconsciência e barbaridade. A Maria foi mãe. É mãe. Uma Mãe Capaz.

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