PAP - o Pedro do "Povo"

JOSÉ RIBEIRO E CASTRO Avenida da Liberdade  11/10/2016


PAP era como muitos chamávamos ao Pedro Aguiar Pinto: uma pessoa rara, um amigo geral.

Hoje, à hora de almoço, aterrou-me por e-mail a notícia inimaginável. Chegou como um raio, fulminante: o Pedro tinha morrido de madrugada. Assim, de repente. Estava connosco - deixou de estar connosco. Assim mesmo.

Ia numa peregrinação a pé a Fátima, que ele próprio conduzia. Fazia-o muitas vezes; e, creio, sempre ou quase sempre nesta última peregrinação do ano, para o 13 de Outubro. Interpela-nos muito este facto e esta circunstância singular da sua morte.

Não vou armar. Não vou, sem o dizer, dar a entender que já fiz peregrinações a pé a Fátima. Diversamente do Pedro e dos que ele habitualmente guiava, nunca fui a Fátima a pé; nunca fiz uma peregrinação assim. Porém, sem nada saber e nada ter experimentado, a segunda coisa que me veio, hoje, à cabeça foi: "Olha! O Pedro já chegou." Nós continuamos a andar, os seus companheiros e discípulos prosseguem a caminhada para Fátima, mas o Pedro chegou primeiro: já lá está.

Há bocado, na missa celebrada por sua alma, na Igreja da Encarnação, havia como que uma nuvem de Sexta-Feira Santa a pairar. Senti-o. Um ambiente geral de tristeza serena e leve, mas que pesava. Era, por um lado, sentidamente leve, talvez porque confiante; e, por outro lado, pesado, porque silencioso, estupefacto, sem palavras. Senti-o assim, como nunca. Já fui a muitas missas de sufrágio e a enterros sem conta, estive na morte de meus avós, de minha mãe, de meu pai, do meu tio, de meu irmão, de cunhados, de amigos muito chegados - e, todavia, nunca o sentira. Nunca havia sentido esta nuvem de Sexta-Feira Santa, como hoje pelo Pedro Aguiar Pinto. Eu creio que isso é bom.

É bom porque assinala a sua Páscoa, porque nos confirma a certeza da sua ressurreição. Aos cristãos, Jesus explica que é por Ele que se vai ao Pai. Nenhum de nós tem dúvidas sobre onde está o PAP, com Quem está e onde irá estar.

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O Pedro vai fazer-nos muita falta. Desde há não sei quantos anos, ele mantinha o "Povo", um blogue, uma newsletter, uma sei-lá-que-mais-electrónica, que chegava, com irrepreensível pontualidade, aos nossos computadores e aparelhos quejandos, pela mesma via por que fomos, hoje, sacudidos pela notícia da sua morte: por e-mail. Que grande e notável serviço ele prestou, caramba!

Esses e-mails eram cuidadas resenhas de artigos e de notícias, que respigava e seleccionava por aí, para nos manter a par do espírito bom. Às vezes, continham também breves comentários seus. E tudo ficava registado, creio, se bem me lembro, no blogue correspondente.

Quanta informação circulou, graças a ele. Quanto ânimo foi regado. Quanto rumo foi apontado, reafirmado e confirmado nos corações e nas mentes de tantos, graças a este trabalho do PAP.

Este "nós", os privilegiados da mailing list que ele foi construindo e geria, eram não sei quantos milhares de católicos e outros portugueses de boa vontade que se empenharam, em diferentes posições e lugares, em incontáveis combates cívicos e culturais, sociais e políticos, pela Vida, pela Família, pela Liberdade, pela Paz, pela Justiça. Sendo nós este "Povo" do PAP, todos fomos regados e alimentados por esse precioso correio diário.

Nestes anos todos, não me lembro de aí ter lido uma só palavra de raiva, ou de zanga, ou de irritação, ou de desânimo. Assim como não recordo qualquer ordem, responso ou ralhete. O Pedro não era assim e não fazia isso - dava até ideia de que não saberia fazê-lo, se lhe passasse pela cabeça o impulso. Partilhava serenamente informação e opinião, só isso. "Isso" que foi muito importante para regar a terra e manter fresco o jardim. 

Vai, na verdade, fazer-nos muita falta: ao Povo, que somos nós; e à sociedade portuguesa, onde estamos e agimos.

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Quando fui Presidente do CDS, o Pedro Aguiar Pinto ajudou-me, logo ao princípio, em Junho de 2005. Não tinha qualquer obrigação de o fazer. Nem sei sequer se ele era do CDS. Talvez fosse; ou talvez votasse apenas no CDS, "quando merecíamos". Não sei.

O PAP era, além da sua fé, um cientista: um cientista respeitado no seu meio e um reputado professor em Agronomia. A ajuda que me deu foi a brilhante participação que teve num seminário que organizámos no IDL - Instituto Amaro da Costa, ainda no palacete da Rua de São Marçal, para apresentar e debater um novo olhar sobre a nossa Economia.

Outros oradores eram da nossa tribo e muito qualificados: o José Paulo Pimentel Castro Coelho (amigo e colega do PAP) e o Gustavo Mesquita Guimarães. O Pedro, assim como Medina Carreira, eram peritos externos que nos foram enriquecer.

Ora, de que nos falou o Pedro Aguiar Pinto? 

De um tema muito raro na agenda do CDS: de Alterações Climáticas. Estávamos em 2005, não em 2016. E não nos falou nem com o discurso negacionista, nem com o discurso terrorista, ambos habituais; falou com factos e constatações, falou com projecções e o seu debate, falou de desafios e também de oportunidades. Falou como era: um cientista, um inovador atento ao futuro, um homem sério.

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Há cerca de 20 anos, conheci um sacerdote notável. Foi na Igreja do Sacramento, também ao Chiado, não muito longe da Igreja da Encarnação, onde fomos hoje rezar pelo Pedro. Era um pequeno curso nocturno sobre temas cristãos, onde esse sacerdote nos deu aulas de Liturgia: tudo explicadinho. Mas não foi o seu saber, que era muito, aquilo que me impressionou, ao ponto de nunca mais o esquecer. 

O Padre José Ferreira, assim se chamava, era, já então, velhote, com mais de 70 anos - bem mais velho, portanto, do que o PAP, hoje. Tinha uma cabeça muito branca, que ajudava ao seu carisma. Era baixo; e a pequena estatura apoiava a sua proximidade connosco - era dose concentrada, poderíamos dizer. Falava e ensinava com um vigor, uma alegria, uma vibração contagiantes. 

Às tantas, já não me lembro porquê, entrou a falar-nos da morte. Não da morte em abstracto, mas da dele. E disse-nos da alegria que sentia, de como se sentia cada dia mais feliz: «a cada dia que passa, sinto-me um dia mais perto de Deus Pai». O brilho radioso no olhar, o sorriso largo que se lhe rasgou, o tom natural da sua voz fizeram-me acreditar totalmente na genuinidade do que partilhou connosco. Falou com entusiasmo - eu nunca estudei Grego, mas aprendi, ainda no liceu, que entusiasmo deriva de "en + theos", literalmente "em Deus".

O Padre José Ferreira estava lá "en theos"; e, cada dia que passava, sabia que ainda mais próximo, o que alimentava a sua alegria. Levou ainda 20 anos até esse encontro total: faleceu em Março passado, com quase 100 anos. Vi-o umas duas ou três vezes mais, no Seminário dos Olivais, a seguir a uma viagem à Polónia que ainda fizemos, num grupo. Encontrei-o sempre como o conhecera: pequeno e concentrado, com o carisma da sua cabeça branca, mais velhote do que o velhote inesquecível que eu já conhecera, e sempre enérgico e alegre, com o entusiasmo a vibrar.

O nosso Pedro Aguiar Pinto viajou hoje. Não tinha a mesma exuberância do Padre José Ferreira, era uma personalidade mais serena. Mas tinha exactamente o mesmo entusiasmo. A mesma fé também. Por isso, a dedicação que só resulta de um e de outra. Aquela mesma certeza do caminho que inspira quem olha e vê, quem ouve e escuta.

Obrigado, Pedro. Nunca agradeceremos o suficiente.


Lisboa, Igreja da Encarnação, 11 de Outubro de 2016

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