Senti que não era capaz de ter o bebé

FAMÍLIA CRISTÃ        11.02.17

Marta é uma jovem, igual a tantas outras de 23 anos. Fez dois abortos, um antes da despenalização e outro depois. Contou-nos a sua história, protegendo a identidade. Este é o seu testemunho em discurso direto:


Tinha 19 anos e estava num relacionamento de cinco anos. Não era uma relação muito saudável. Comecei com dores de barriga, tipo menstruação. Nunca suspeitei até que a médica pôs a hipótese de estar grávida. A altura não podia ter sido pior. O meu avô morreu no mesmo dia. Nessa altura estava grávida de seis semanas. O meu namorado disse logo: «Sabes o que tens de fazer.»

Fui ao hospital de Santa Maria à consulta da IVG, como eles dizem. A enfermeira foi simpática e ajudou-me a preencher um questionário sobre a situação socioeconómica e familiar. Estava a viver sozinha, sem sustento próprio. Senti que não era capaz de ter o bebé. Não havia outra maneira, senti muita pressão do meu namorado. Não via outra opção. Eu estava bastante afastada da Igreja e da minha família. Não estive com nenhum psicólogo nem ninguém me falou de apoios. Foi tudo muito rápido porque já estava de oito semanas. Agora pensando nisso gostava de ter descoberto que estava grávida mais tarde…

Fiz a ecografia e a médica disse-me: «Sabe que está de oito semanas?» Foi rude, mas nem me lembro se vi a ecografia. Vim para casa pensar durante três dias. Não me lembro de nada desses dias. Na altura estava com uma depressão que foi diagnosticada só mais tarde.
Passados esses dias, a enfermeira mandou-me sentar na marquesa. O médico apareceu logo de seguida, deu-me um comprimido para tomar e outro para tomar dali a x horas e que aquilo ia doer. Era como se fosse um período normal. Tive de chamar uma amiga para me ajudar. Não conseguia estar sozinha. Tive dores fortes, são contrações, e hemorragias grandes. Sozinha era bem possível que tivesse desmaiado.
Agora tenho uma ideia mais amadurecida do que na altura e sei que se tivesse falado com alguns familiares e amigos tudo teria sido diferente e poderia ter avançado…

Durante algum tempo enterrei o assunto. Foi como se não tivesse acontecido nada. Foi como um anestésico em todo o assunto. Eu não tocava no assunto e ninguém à minha volta tocava no assunto. Só quando comecei a ir a um grupo de jovens é que tudo veio à tona. Foi um choque. Não me conseguia perdoar. Já me tinha confessado e mesmo assim era uma coisa que me pesava e que me magoava.
Não era só pelas questões religiosas. Desde pequenina andei com a minha mãe a recolher assinaturas contra o aborto. Os valores da vida eram intrínsecos a mim e tinha noção de que toda a vida tem valor e é digna. Eu que defendo isso… aquilo era uma rutura em mim mesma. Estava a ser muito difícil lidar com isso, apesar de eu ter tentado durante quatro anos apagar uma parte de mim não quer dizer que não faça parte de mim. Quando veio tudo à tona foi um momento muito difícil. [voz embarga-se e sorri]

Com o retiro da Vinha de Raquel consegui olhar com outra perspetiva e experimentar a misericórdia de Deus. Estar num ambiente em que a pessoa saber que não vai ser julgada e que a única coisa que a espera é aceitação e perdão torna tudo muito diferente. Na Vinha de Raquel o objetivo é ajudar a sarar esta ferida e tem um ambiente muito próprio e propício.

Estou em processo de pacificação. Está muito melhor, mas em processo. Lembro-me com mais carinho do dia em que descobri que estava grávida. É um bocadinho difícil dizer… são dois… filhas ou filhos.
O primeiro aborto que fiz tinha 16 anos. O comprimido era exatamente o mesmo. É o que me lembro: o comprimido era igualzinho. É a coisa de que melhor me recordo. Nessa altura estive mais tempo em casa, porque era mais miúda e o meu pai não queria que ninguém soubesse.

Quando fui fazer o segundo não pensei no primeiro. Já tinham passado três anos e já estava afastada da Igreja há muito tempo. Tinha adormecido os valores que tinha. Não sei bem explicar. É como se fechasse a minha vida num baú a sete chaves e “fica aí quietinho”.
Eu estava muito perdida. Não o queria fazer, mas não tinha nada a dizer porque tinha só 16 anos. O meu namorado fez uma cena horrível e o meu pai disse que o melhor a fazer era abortar, o que para mim foi um choque porque ia contra tudo aquilo que ele me tinha ensinado e todos os valores que a minha família tinha. Tentei confessar-me, mas apanhei o padre desprevenido e não reagiu da melhor maneira. Aquilo assustou-me e acabou por levar a um afastamento. Acabei por esconder memórias e quando fui fazer o segundo quase nem pensei no primeiro, porque estava bastante enterrado.
Quando voltou tudo, voltou também este primeiro. Foi um embate jeitoso.

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