SER: o facto que passou a decisão

INÊS DIAS DA SILVA    08.02.17   ACEGE

O SER já não é um facto que faz as pessoas na sala de partos vibrar, mas passou a ser uma decisão.

Ouvi uma vez uma pediatra de neonatologia dizer que o que a impressionava mais no nascimento é que entravam para a sala de partos 3, 4 pessoas e daí a uns momentos havia mais uma. E que essa 'nova' pessoa não se impunha pela sua inteligência ou personalidade pois naquele momento ainda não eram conhecidas, mas impunha-se só pelo facto de ESTAR, de SER

Eu e o meu marido vivemos quatro vezes este momento do nascimento de mais um de nós. E para nós, foi sempre uma experiência de amadurecimento darmo-nos conta de que está ali mais uma pessoa, que apesar de gerada da nossa união, não foi criada por nós. Se fosse criada por nós, não nos seria desconhecida a cor dos seus olhos, a sua inteligência, a sua personalidade... No entanto, um pai e uma mãe sabem, que com o crescimento, estas características revelam-se e com elas revela-se a total ignorância dos pais sobre quem é, na verdade, o seu filho. 

Não houve momento em que esta percepção tenha sido mais clara para nós do que no nascimento do nosso filho Pedro, uma criança diferente logo no início, pela sua doença genética rara e hereditária, da qual tínhamos toda a informação, mas para a qual decidimos não fazer a prevenção medicamente sugerida: fertilização in vitro com manipulação genética ou aborto.

Porque é que um casal diferenciado (ambos com formação superior), com conhecimento de um diagnóstico hereditário de uma doença rara e incapacitante, opta por não a prevenir? Acima de tudo porque na nossa experiência de vida, ganhámos a certeza de que uma doença não é uma sentença nem define uma pessoa. Como tal, quando casámos, vímos como mais prejudicial para nós e para o amor que nos unia, ver a nossa descendência gerada em laboratório. O nosso amor pedia um casamento sacramental, e ver nascer dele, os filhos, quando e como haveriam de nascer. Esta entrega não foi feita ao acaso, porque acreditamos que o Criador sabe o que faz, e tudo o que fez, 'viu que era muito bom' (Gen, 1, 31).

Apesar de certos dos passos que tomámos, ali nos encontrávamos com uma criança diferente que ninguém conhecia e que não obedecia aos manuais de desenvolvimento infantil. A consulta genética no Hospital de Santa Maria foi o primeiro momento em que pensámos vir a receber ajuda para melhor ajudar o nosso bebé acabado de nascer. No entanto, numa secretária onde os processos se empilhavam de forma tão desorganizada que não foi possível encontrar o nosso, a única ajuda oferecida foi para 'fazer' outro filho. Á saída, o meu marido disse, com graça, que não poria os seus genes na mão de quem não consegue encontrar um processo em cima de uma secretária...

Cedo, o Pedro começou a revelar sintomas de uma insuficiência respiratória que o levou de urgência várias vezes para o hospital, gravemente doente. Das perguntas feitas à entrada, constava sempre se tínhamos feito diagnóstico pré-natal, a informação que tínhamos das alternativas e o que nos tinha sugerido o nosso obstetra. A criança estava ali, e era a nossa preocupação, mas a preocupação dos médicos parecia ser sempre identificar a falha num processo preventivo pré-natal que não tinha funcionado. Sentimos desde o início, que o Pedro era, para grande parte das equipas médicas, alguém que não devia ter nascido e por isso era recebido como um problema consequente da incompetência de outros colegas que era importante identificar, para garantir que o mesmo não voltasse a acontecer. 

A partir do momento em que chegou de Inglaterra um envelope com a confirmação do diagnóstico, fomos preparados pela equipa para 'o pior', e nos momentos piores que efectivamente chegaram, foi-nos muitas vezes sugerido de forma que consideramos extemporânea, que não insistíssemos em tratamentos que prolongassem a sua vida.

Num desses momentos em que vimos o Pedro na agonia que pensámos ser a do fim da sua vida, estávamos com a médica que o passou a acompanhar, a fazer as nossas despedidas. Enquanto lhe afagávamos os cabelos entre as fitas da mascara do seu ventilador, a médica disse, para nosso espanto: "Ele é mesmo muito bonito". 

Em três anos, nunca se tinham referido a nenhuma característica dele que não fosse deficiente ou insuficiente. Por isso aquela frase relembrou-nos a frase do Génesis: "Deus fez todas as coisas e viu que era tudo muito bom", e renovou a nossa alegria de ser seus pais, bem como a da médica de ser sua médica, o que contagiou toda a equipa do serviço.

Em conclusão, a nossa percepção é de que a despenalização do aborto, que se tornou rapidamente num direito dos pais a matar os seus filhos, criou uma sociedade médica e de cuidados de saúde céptica quanto ao valor de cada um de nós. Um diagnóstico traz com ele uma equação, onde são pesados os prós e contras de SER. O que vimos acontecer neste anos em meio hospitalar foi que esta equação começou a sobrepôr-se à pessoa. SER já não é um facto que faz as pessoas na sala de partos vibrar, mas passou a ser uma decisão. Por isso, não me espanta que perante um grande sofrimento seja mais comum dizer-se que talvez seja melhor não viver. Mas nós aprendemos, por experiência, que a única resposta razoável perante o sofrimento de alguém que amamos, é re-afirmar a beleza da sua vida. O Pedro não morreu naquele dia, tem hoje 4 anos, metade dos quais passou internado e em agonia respiratória, e "é mesmo muito bonito"

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