A tradição democrática sob fogo cruzado

JOÃO CARLOS ESPADA     OBSERVADOR   22.05.17
Em boa parte, as recentes críticas académicas e políticas à democracia são expressão de um fenómeno comum: a perda de memória sobre a tradição ocidental da liberdade sob a lei.
Pode ser apenas coincidência, mas vários obras académicas recentes têm vindo a pôr em causa o sistema e/ou a ideia democrática. Curiosamente também, umas criticam a democracia por ser demasiado “populista”, outras por ser demasiado “elitista”. Dá a impressão de que a dicotomia que tem dominado tantas batalhas eleitorais recentes — entre “populismo” e “elitismo” — chegou também aos (ou, quem sabe, partiu dos) seminários académicos.
Against Democracy, de Jason Brennan (Princeton University Press) é um dos mais famosos títulos recentes. O autor passa em revista décadas de estudos empíricos sobre como as pessoas comuns pensam e decidem sobre política. E conclui que todos eles revelam que as pessoas escolhem e decidem na base de uma enorme ignorância sobre as reais questões políticas e técnicas em jogo. Para impedir o “governo da ignorância” que ele associa à democracia, Brennan propõe então um sistema “Espistocrático”: o governo dos que possam provar deter mais conhecimentos.
Um argumento semelhante é apresentado por Christopher H. Achen e Larry M. Bartels em Democracy for Realists: Why Elections Do Not Produce Responsive Government, também da Princeton University Press. Mais uma vez, estes autores citam inúmeros estudos empíricos que mostram como os eleitores decidem mais com base em identidades sociais e sentimentos de grupo do que com base no conhecimento das questões políticas e técnicas em jogo. Embora estes autores não apresentem uma alternativa clara ao actual sistema democrático e eleitoral, a sua conclusão é clara: as escolhas eleitorais não são baseadas na “razão”.
Estes são dois livros de reputados académicos norte-americanos que criticam a democracia por ser demasiado “populista”. Mas também tem havido obras académicas que criticam a democracia eleitoral por ser demasiado “elitista”. A mais conhecida é a do belga David Van Reybrouck, Against Elections: The Case for Democracy. Basicamente, o autor retoma antigos argumentos contra a representação eleitoral dizendo que ela apenas perpetua elites alheias aos sentimentos populares. Para introduzir mais variedade, Van Reybrouck preconiza o regresso ao método ateniense do sorteio periódico de representantes de entre o chamado povo.
Não posso neste espaço tratar com justiça os livros seriamente argumentados destes autores. Mas também não posso deixar de alertar para o surgimento destas críticas académicas contra a democracia — precisamente quando as críticas à democracia também sobem de tom, à esquerda e à direita, entre inúmeros actores políticos na Europa e nos EUA.
Creio que, em boa parte, as críticas académicas e as críticas políticas à democracia são expressão de um fenómeno comum: a perda de memória sobre a tradição ocidental da liberdade sob a lei. E essa perda de memória é também em grande parte resultado das “conquistas progressistas” alcançadas pela educação moderna: o total abandono do estudo da Tradição dos Grandes Livros da tradição ocidental.
Se a Tradição dos Grandes Livros não tivesse sido abandonada, talvez não fosse preciso recordar que a democracia moderna não é uma “invenção” moderna. É resultado de uma longa e civilizada conversação — entre Atenas, Roma e Jerusalém, como costumamos dizer — fundada no ensaio e no erro, bem como no compromisso entre razoáveis preocupações diferentes. Estes compromissos não geraram a democracia como melhor regime: apenas como menos mau do que as alternativas, como muito certeiramente sublinhou Winston Churchill.
Churchill foi sem dúvida no século XX o mais célebre defensor da democracia ocidental contra os seus inimigos. Mas sempre repetiu que a democracia era o pior regime, com excepção de todos os outros. E, muito antes dos autores que citei neste artigo, também ele disse que “o mais poderoso argumento contra a democracia é uma conversa de 5 minutos com um eleitor médio”. Ainda assim, quando perdeu as eleições em Junho de 1945, depois de ter ganho a guerra em Maio do mesmo ano, aceitou sem protesto a decisão do “eleitor médio” e sentou-se ordeiramente na bancada do oposição.
Não gostaria de ser mal interpretado. Não estou a preconizar a exclusão dos livros acima citados da séria e tranquila ponderação académica. Mas, em termos de política prática, estou sem dúvida a alertar contra os argumentos “científicos” contra a democracia. E, para indignar ainda mais os inúmeros críticos de Churchill (que hoje misteriosamente parecem crescer à esquerda e à direita, designadamente nos comentários neste jornal), termino com um conselho do velho estadista: “devemos precaver-nos contra as inovações desnecessárias, sobretudo quando ditadas pela lógica.”

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