Os dez pontos críticos do caso Charlie Gard

ELIO SGRECCIA*,  http://www.ildonodellavita.it/blog/   02.07.17
* Presidente emerito da Pontificia Academia para a Vida 

Nestas horas dramáticas, assistimos, doridos e impotentes, aos últimos desenvolvimentos e aos contornos mortais que está a assumir o caso do pequeno Charlie Gard, a criança recém-nascida inglesa de dez meses que padece do síndrome de encefalomiopatia mitocondrial infantil, a qual, com base em várias decisões judiciais de três diferentes tribunais ingleses, de diferentes graus, e, por último, do próprio Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, deveria ser conduzida à morte através do desligar da máquina que assegura a sua ventilação mecânica e da consequente interrupção da  sua alimentação e hidratação artificiais, não sem antes ser colocada num estado de sedação profunda

Os tribunais ingleses, de diferentes instâncias, afirmaram que o processo de degradação geral das condições clínicas do Charlie e a consequente deterioração progressiva e imparável  da funcionalidade dos órgãos que presidem às funções vitais, desde logo as respiratórias, levam a crer que qualquer decisão relativa a ações ulteriores que prolongassem semelhantes condições de vida deveria ser considerada ilegítima, por não ser tomada no efetivo superior interesse da criança, mas destinada, antes, a aumentar, no tempo e na intensidade, a dor e o sofrimento desta. O que mais surpreende é que a própria ideia de submeter o Charlie a um protocolo de terapias experimentais em curso nos Estados Unidos, proposta várias vezes formuladas pelos pais da criança, foi considerada impraticável, ou melhor, “fútil”, pelos médicos consultados pelos juízes, diante da exigência, esta sim premente, de dar execução imediata e definitiva ao sentido unânime das sentenças até agora emitidas

Parece que tudo concorreu, nos últimos seis meses, para realizar uma espécie de “obstinação tanatológica” em relação ao pequeno Charlie, uma corrida, da parte de juízes e médicos, destinada a assegurar a solução mais rápida possível para o seu caso, anulando qualquer réstia de esperança dos pais, assim como qualquer vislumbre de luz sobre a possibilidade de sucesso de uma terapia que, apesar de ter sido até agora experimentada apenas em ratos e quanto a algumas doenças diferentes daquela de que padece o recém-nascido inglês, segundo o que disse o professor responsável pela experiência que decorre nos Estados Unidos quando para tal interpelado pelos pais do Charlie, poderia, pelo menos teoricamente, acarretar benefícios para as suas condições gerais de saúde. O que é certo é que, depois de ter sido pedida a autorização para proceder à experimentação da terapia em relação ao Charlie, em janeiro passado, a encefalopatia epiléptica de que este sofre, através de crises reiteradas, criava ulteriores e graves danos cerebrais. Todavia, o está  em discussão diz respeito, sobretudo, e sempre, à possibilidade de decidir quando, e como, pôr fim à vida de um ser humano indefeso. A propósito, parece oportuno considerar alguns pontos críticos que emergem da consideração integral deste caso, paradigmático sob várias perspectivas. 

1. Incurável nunca pode ser confundido com “incuidável”: uma pessoa que padeça de uma doença considerada, no estado atual da medicina, incurável, é, paradoxalmente, a pessoa que, mais do que qualquer outra, tem o direito de pedir e obter assistência e cuidado, atenção e dedicação contínuas: trata-se de um fundamento básico da ética do cuidado, que tem como principais destinatários precisamente aqueles que se encontram num estado de vulnerabilidade, de menoridade, de maior debilidade. E o Charlie representa, de modo paradigmático, o exemplo de quem tem o direito de ser assistido em qualquer fase da sua doença, em razão do estado de necessidade, decorrente da idade e da doença, em que se encontra. O rosto humano da medicina manifesta-se, precisamente, na prática clínica do “cuidar” da vida da pessoa sofredora e do doente.

2. O direito a ser, de modo contínuo, objeto, ou melhor ainda, sujeito das atenções e do cuidado da parte de familiares e não só, decorre da dignidade da qual uma pessoa humana, ainda que recém-nascida, doente e sofredora, nunca deixa de ser titular. É o ser substancial do Homem e as suas potencialidades que fundam esta dignidade, e não apenas as suas concretas e acidentais atualizações. Isto é o que se entende por “dignidade puramente ontológica da pessoa”, um estatuto que prescinde completamente da faculdade de utilizar ativamente as faculdades próprias de um ser racional, bastando que as mesmas existam como potencialidades atuais ou eventualmente atuáveis pelo próprio ser racional.

3. A alimentação e hidratação artificiais mediante sonda naso-gástrica não podem ser consideradas, em caso algum, uma terapia. Não o são pela artificialidade do meio utilizado para as ministrar, pois não se considera terapia dar leite a um recém-nascido através de um biberão. Não o são pelos processos através dos quais são produzidos estes alimentos, pois não se considera terapia o leite em pó, por exemplo, cuja produção também resulta de um processo industrial longo e completamente mecanizado. Não o são por serem prescritas por um especialista médico, pois a própria aquisição do leite artificial está subordinada à prescrição médica de um pediatra. Água e comida não se tornam  dispositivos médicos pelo simples facto de serem ministradas artificialmente e, portanto, interromper o seu fornecimento não equivale à suspensão de uma terapia, antes equivale a deixar morrer de fome e de sede quem, simplesmente, não é capaz de se alimentar autonomamente.

4. A ideia básica que fundamenta o consentimento informado tem a ver com o princípio de que o paciente nunca é um indivíduo anónimo a quem são aplicados determinados conhecimentos técnicos, mas um sujeito consciente e responsável que deve ser chamado a partilhar a execução de tudo o que possa ser necessário para a melhoria da sua saúde e, eventualmente, para atingir um objetivo de cuidado e de cura. Isto implica a necessidade de que ele seja envolvido nos processos de decisão que lhe digam respeito, numa relação dialógica que impeça que ele se veja colocado na situação de objeto passivo de decisões e escolhas de outrem. O caso do pequeno Charlie revela, pelo contrário, como, com o decurso do tempo, se foi consolidando uma dinâmica de substancial afastamento entre as decisões da equipa médica e a vontade dos seus pais, como evidencia, emblematicamente, a última proibição que lhes foi imposta, a de levarem o seu filho para casa e aí o verem morrer.


5. A proibição de sujeitar o Charlie a um tratamento experimental não pode, em caso algum, justificar-se através do apelo ao estado de sofrimento em que ele se encontra. É possível que a terapia experimental não viesse a dar os resultados médicos esperados, mas é igualmente verdade que os sofrimentos do Charlie exigem uma abordagem paliativa integral e sistemática, que, hipoteticamente, também poderiam acompanhar a própria terapia experimental. A recusa do acesso a essas terapias foi motivada quer em nome da sua inutilidade prognóstica – aspeto cuja álea cabe nos parâmetros de incerteza absoluta e normalmente associados a qualquer terapia experimental -, quer pela necessidade de o poupar àqueles sofrimentos ulteriores que o prolongamento da vida nessas condições poderia causar: portanto, a perspectiva, ainda que apenas remota, de manter a vida do Charlie, ou até de prolongar o tempo da sua vida através da terapia experimental, foi aprioristicamente considerada uma perspectiva não praticável, em nome da necessidade de lhe evitar sofrimentos ulteriores, e isto não através de adequadas soluções paliativas, mas através da morte provocada. 

6. O princípio do superior interesse do menor, que os tratados internacionais colocam no centro dos instrumentos de proteção deste e que os próprios tribunais ingleses assumiram como justificação fundamental das suas decisões, cremos que dificilmente possa implicar, ou melhor, legitimar uma forma de eutanásia passiva como aquela que se decidiu aplicar ao pequeno Charlie. Cremos que o seu superior interesse vai na direção de lhe assegurar uma existência o mais possível digna, mediante uma oportuna estratégia analgésica que permita controlar a dor, se não fosse, realmente, possível seguir a estrada do acesso ao protocolo experimental já em curso nos Estados Unidos. Que é exatamente o que foi ininterruptamente pedido pelos pais do Charlie até hoje.

7. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, incrivelmente, furtou-se à abordagem de todos os aspetos substanciais até agora elencados, assumindo uma postura puramente processualista, em nome do princípio da margem de apreciação. Se, por um lado, salientou, na sentença que tem a data de 28 de junho passado, que as decisões dos tribunais nacionais ingleses de modo algum integravam uma violação dos artigos 2º, 6º e 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, confirmando assim a correção formal dessas decisões, por outro lado, considerou que não devia entrar na análise do mérito da questão da suspensão da alimentação-hidratação-respiração artificial em nome daquela autonomia soberana dos Estados membros que os autorizará a disciplinar como lhes apraz as questões de alcance ético mais complicado, como é o caso da admissibilidade, ou não admissibilidade, da eutanásia passiva de um recém-nascido. E isto apesar de das disposições conjugadas dos artigos 2º e 8º da Convenção resultar claramente a proibição de privar deliberadamente quem quer que seja do bem fundamental da vida.

9. É ainda mais inquietante a ligeireza com que se aceita o paradigma da qualidade de vida, ou seja, aquele modelo cultural que tende a reconhecer a não dignidade de algumas existências humanas, completamente identificadas e confundidas com a patologia de que são portadoras ou com os sofrimentos que a acompanham. Nunca um doente pode ser reduzido à sua patologia, pois cada ser humano não deixa de ser, por um instante que seja e apesar da sua condição de doença e/ou de sofrimento, um universo incomensurável de sentido que merece a cada instante a atenção de quem quer incondicionalmente o seu bem e não se resigna a considera a sua existência como uma existência de segunda classe pelo simples facto de conhecer a necessidade e o sofrimento. Uma existência a quem se faria um favor cancelado-a definitivamente. E isto vale ainda mais no caso daqueles que não podem, ou já não podem, exprimir aquilo que são e aquilo que sentem, como no caso do pequeno Charlie. 

10. Nella trasparenza delle posture schizofreniche implicate da questi nuovi paradigmi culturali, si può cogliere l’ambivalenza di chi, nel rivendicare la libertà di accesso totale ed indiscriminata all’eutanasia, basandola sull’esclusivo predominio dell’autonomia individuale, nega allo stesso tempo quell’autonomia decisionale in altri casi, come quello in esame, dove si ritiene che siano legittimati a decidere i soli medici, senza coinvolgimento alcuno dei genitori. L’ambivalenza di chi pensa sia giusto che i medici versino nella condizione di poter elargire ancora un margine di tempo ai genitori per consentire loro di elaborare il distacco dal figlio, permettendogli così di permanere in sua compagnia, e non pensa invece a quanto lo necessiterebbero le madri surrogate che vengono deprivate dei loro feti, subito dopo la nascita, per assecondare i desideri dei relativi “locatori di ventre”. L’ambivalenza di chi pensa a tutelare la dignità della vita di un soggetto, negandogli la vita stessa, che è il fondamento principe non solo della dignità dell’uomo, ma di ogni altro riconoscimento che possa essere fatto a suo favore. L’ambivalenza di chi si batte per la difesa giudiziaria, istituzionale, internazionale dei diritti dei più deboli, nella cornice di ordinamenti democratici, e poi accetta di buon grado di veder legalizzata o giuridicizzata l’eutanasia, praticata finanche sui più piccoli, sui più deboli, sui più bisognosi. 

10. Na transparência das posturas esquizofrénicas que estes novos paradigmas culturais implicam, pode colher-se a ambivalência de quem, ao reivindicar a liberdade de acesso total e indiscriminado à eutanásia, baseando-a no predomínio exclusivo da autonomia individual, nega, ao mesmo tempo, essa autonomia de decisão noutros casos, como este, onde se considera que só os médicos têm legitimidade para decidir, sem qualquer envolvimento dos pais. A ambivalência de quem pensa que  é justo que os médicos possam ainda conceder aos pais uma margem de tempo mais alargada para lhes permitir elaborar a desvinculação do filho, permitindo  assim que permaneçam em sua companhia, e já não pensa em como desse tempo também teriam necessidade as mães “de substituição” que são privadas dos seus filhos logo depois do nascimento, para satisfazer o desejo dos respetivos “locadores de ventre”. A ambivalência de quem pensa proteger a dignidade da vida de um sujeito, negando-lhe a própria, que é o fundamento principal, não só da dignidade do Homem, mas de qualquer outro reconhecimento que possa ser feito em seu favor. A ambivalência de quem se bate pela defesa judiciária, institucional, internacional dos direitos dos mais fracos, no quadro dos ordenamentos democráticos, e, depois, aceita de bom grado ver legalizada ou judicialmente autorizada a eutanásia, praticada até sobre os mais pequenos, os mais débeis, dos mais necessitados.  

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