Certificado de ordem primária (1ª crónica estival)

MARIA JOÃO AVILLEZ   OBSERVADOR    08.08.17
Fui-me apercebendo que, se não me lembro de os meus pais se terem “ocupado” desta forma dos meus filhos, foi simplesmente porque não era, como hoje é, (quase) urgente fazê-lo. Era-se avó doutra forma.
1. Não é que esteja distraída com o Verão (como se pudesse dar-me a esse luxo); nem que desde Julho não se cozinhem empadões, guisados e picados; ou não haja, no ar, aquele inquietante pré-aviso de iminente alteração da ordem vigente. Mas a verdade é que não esperava para já tão aparatoso alarido. Temi afogar-me entre as datas de chegada dos vários “estrangeiros” onde vive a prole, entre a “requisição de apoios logísticos e automobilísticos, entre a permanente indefinição dos locais por onde contam cirandar, entre vários e variados outros requisitos. O “pater famílias” exausto antes do tempo, optou por fabricar um mapa (um excel mas detesto a palavra) com a ilusão de que lá imprimindo a complexa agenda das férias estivais dos filhos&famílias, “tudo se resolveria”. O “tudo” não é senão a (vã) tentativa de que as nossas cabeças percebam a quantas andamos e consigam depois organizar-se (as cabeças) em função dessa suposta, digamos, descoberta de algum norte trazido pelo mapa.
2. Não tem sido fácil, nem fluído: tão depressa os filhos chegam num dia como “afinal” noutro; mal anunciam, com “carácter definitivo”, que estacionarão de armas, bagagens e filhos em Lisboa, “afinal” vão directos para destinos neles assaz improváveis como a Praia Grande ou Sesimbra, “mas se puderem deixem aí um carro” (como se tivéssemos uma loja de carros).
Passadas que serão porém esses novos locais e a sacrossanta paragem na mítica “costa vicentina”, a tribo desaguará no nosso Oeste, produzindo ao aterrar uma indefinível composição de “feelings” que vão da nossa mais imensa alegria a um sempre reeditado espanto face à sua prodigiosa capacidade em subverter a ordem e a vida como nos habituamos a achar que elas são. Como se trouxessem consigo um certificado de desordem, devidamente autenticado pela realidade que usam praticar.
Convencionara-se – verbo de uso por aqui pouquíssimo praticado – que o tal mapa contemplaria o calendário da vida estival, das entradas e saídas, até à (preciosa) informação sobre o “estatuto” dos amigos esperados – residente, passante, hóspede de curta duração… Serviu de pouco: ultrapassado pela velocidade das geografias e geometrias destas vidas, o mapa foi ficando de pouca serventia.
3. “É para avisar que depois de Sesimbra, chego aí com um grupo no dia tal”, anunciava-me há dias telefonicamente um filho, algures da vasta Europa. Um “grupo”?
O “aviso” alertando para (ainda) mais camas e víveres (quem gere a estalagem sou eu) indicava sobretudo o quanto o meu interlocutor telefónico pouco se impressionara com a lotação esgotada da casa. Já anteriormente requisitada para abrigar amigos estrangeiros de outro irmão que “vinham de propósito, mãe!” Deslocavam-se do mundo para A-dos-Negros, operação que num puro acto de overbooking eu temia que fosse agora curto-circuitada. E por “um grupo”.)
E pensar que faltavam ainda os “avisos” de última hora de um terceiro filho que também poderia mudar datas e alterar destinos, que a única coisa previsível em tudo isto é a imprevisibilidade deles próprios.
4. Desisti. Não era só o overbooking. Nem supermercados, reabastecimentos de frigoríficos ou andar por estes montes e vales a suplicar mais ajudas domésticas. Era, como dizer?, a perplexidade com que (ainda) olho esta espécie de “rendição” que o século XXI – e o final do XX – viu consumar-se nos pais face aos filhos. E dos avós, capturados pela vida dos netos, as compras, os sapatos, as gripes, os estudos, as actividades extra-escolares dos netos. Ser avó virou uma saga generosa, capaz de transfigurar uma reforma pacata numa cavalgada afanosa. Uma segunda vida: sem horas e garantidamente multiusos.
Sim, sim, já o ouço, caro leitor, a dizer-me que se não quiséssemos, não seria assim, rendição tão voluntária. Sucede que não é bem isso e só o descobri quando chegou a nossa vez. Passou a ser assim, porque passou a ser preciso acudir.
Quem tem trinta ou trinta e tal anos esfalfa-se para domar a vida: muito trabalho fora de casa e pouca ajuda dentro dela; filhos, custo de vida alto, remunerações baixas. Como “actuar” face a um estado de coisas que os filhos têm hoje de protagonizar e vencer ao mesmo tempo, senão aligeirando quotidianos povoados de crianças e responsabilidades, com uma duração non stop entre a aurora e a noite entrada?
Fui-me apercebendo com os anos que, se não me lembro de os meus pais se terem “ocupado” desta forma dos meus filhos, foi simplesmente porque não era, como hoje é, (quase) urgente fazê-lo. Era-se avó doutra forma. A configuração da vida desenhava-se com outras coordenadas que pouco ou nada oscilavam. A previsibilidade era um instrumento de navegação, havia amparos familares e ajudas domésticas; havia algo de parecido com garantias, ainda não se praticava a precaridade. E havia menos surpresas. De algum modo sentíamo-nos a salvo. Sem nunca perceber que isso não tinha preço mas tinha os dias contados.
5. Apesar do omnipresente Canal Panda, de tropeçar mil vezes ao dia em sapatos desirmanados, biberons e toalhas de praia sempre sem dono, de me afligir outras tantas com o assassínio dos canteiros pela bola de futebol; de, em vão, me enervar com o facto (não despiciendo) da parte de cima dos pijamas não “pertencer” à de baixo; apesar dos inoxidáveis “mas” (“mas porque é que não posso ter o Ipad do avô?”; “mas porque é que não havemos de ir às Caldas comer um gelado?“; “mas porque é que tenho de ir tomar banho?”) é aqui, neste Oeste silencioso, brumoso e atlântico, que me sinto a salvo. E neblinas por neblinas, iodo por iodo, ventos por ventos, prefiro-o a qualquer Praia Grande ou Pequena, ou à improvável Sesimbra que este Verão seduziu os meus. Um porto de abrigo onde (com breve escapadas) se permanece toda uma época, deixando Lisboa muito ao longe, mesmo sabendo-a à mão de semear, pertíssimo daqui. Mas a essência desta “outra vida” que o poeta dizia que “era o Verão” não é senão tornar maravilhosamente longínquas quaisquer distâncias, por mais breves que sejam ou estejam.
Sim, é verdade, o desabafo contradiz a desordem ruidosa acima descrita que caracteriza as famílias numerosas que nos alegrarão os dias, guiadas pelo excel do “pater familias”. Mas é ainda mais verdade que o Verão tem o dom de “produzir” distâncias. Distâncias de tudo. O que logo define (e perfuma) o que pode ser essa “ outra vida”. Distante da “outra”.
Talvez por isso aqui me julgue a salvo. (Mas só talvez.)

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