As leis do quarto escuro


 JOSÉ RIBEIRO E CASTRO         OBSERVADOR         02-01-2018


De um lado, um amplo consenso a favor da lei em São Bento; do outro, um amplo consenso de violento repúdio na opinião pública. Só isto diz tudo. A Assembleia contra o povo, o povo contra a Assembleia.

1. Se, como agora se diz, uma conspiração populista quisesse definir um plano para arrasar a depauperada imagem dos partidos e da vida parlamentar, imaginaria isto: primeiro, encontrar uma matéria legislativa sensível e polémica, tal como, sei lá, o financiamento da política; segundo, juntar os partidos todos numa grande operação de “consensocracia”; terceiro, produzir as propostas longe do escrutínio público; e, finalmente, aprovar tudo a trouxe-mouxe, sem grande esclarecimento. Foi o que aconteceu neste caso da lei de financiamento dos partidos.

O plano executado não foi definido para este objectivo de descrédito estrondoso. Mas foi cumprido exemplarmente, de modo meticuloso e excelentíssima competência. É mesmo a única competência que o processo revelou: colocar abaixo de zero a imagem dos partidos, da política e do Parlamento. Pior era impossível.

2. Nos últimos anos, não sei quando começou, a Assembleia da República concebeu e foi enveredando, algumas vezes, por procedimentos que degradam a qualidade do trabalho legislativo e a seriedade do processo democrático. O Regimento contém frestas, labirintos e alçapões que facilitam a laboriosa imaginação do dirigismo partidário e permitem a fabricação de mecanismos de esconderijo. Ora, se não prevalecer, também no plano procedimental, uma forte consciência das questões de princípio, a seriedade e a transparência da tramitação das leis e resoluções podem ser severamente afectadas, senão totalmente comprometidas. Foi o que aconteceu aqui.

Voltei a deputado em 2009; algumas vezes, estranhei e critiquei desvios deste tipo com que me deparei. Era uma voz isolada e pouco ou nada consegui. Nuns casos, votei contra; noutros, os casos desfaleceram por si; noutros, condescendi ou por não terem grande relevância, ou por, nas questões de fundo, não estar contra. Este é um dos perigos da imaginosa criatividade da burocracia parlamentar, ao arrepio da pureza da tramitação democrática. Não pode ser um cozinhado cúmplice e obscuro, mas uma construção transparente e de contraditório. E o ambiente sedutor de concertação e “consenso” corporativo em que, placidamente, toda esta imaginação se desenrola dificulta e pode bloquear o espírito crítico. Frases como “é assim que se faz” ou “já está tudo de acordo” adquirem valor meta-jurídico, dissuadem os novatos, blindam o já adquirido e condicionam qualquer deputado que faça demasiadas perguntas.

A derrapagem parlamentar chegou, neste caso do Natal 2017, ao despiste catastrófico. Não conheço outro caso similar. É possível que tenha havido, mas não sei de outro igual. As práticas nocivas que conheci e critiquei eram, umas, simples decadência de si mesmas, enquanto, outras, revelavam já assinalável engenho ou habilidade ardilosa.

Desde logo, a prática estabelecida de amalgamar as votações muito relevantes e as pouco significativas numa única dose massiva de dezenas ou centenas de “votações regimentais”, em final de semana, o que, na cascata consecutiva dos braços levantados, atenua e pode apagar mesmo a consciência do que se está a votar. Depois, em determinados temas que enfrentavam resistências, a prática frequente de encerrar os debates na generalidade, fazendo baixar de novo à comissão os textos sem qualquer votação, para reapreciação; mas, como isto era feito pela aprovação de um requerimento, fazer passar a ideia de que se entrara de imediato na fase da especialidade e a aprovação do requerimento equivalera a aprovação na generalidade – uma pura fraude. Algumas vezes, estes textos arrastavam-se anos a fio na comissão, à espera de melhor oportunidade ou de que as resistências se distraíssem, beneficiando de sucessivas prorrogações de prazo, concedidas de forma irregular e à socapa. Os “textos de substituição” também se prestam à fabricação irregular de autênticos projectos de lei novos, desviando-se do seu propósito e podendo ser abusados para iludir as regras, fins e princípios da iniciativa de lei. Conheci também um caso – importante – de alteração de uma lei estrutural, em que se permitiu a entrada, pela porta do cavalo, já na fase final da especialidade, de novas emendas à última da hora, completamente fora do quadro material da iniciativa de lei apresentada e, portanto, em matéria que extravasava por completo o debate e a votação na generalidade que tinham aberto o processo. Enfim, lidei de perto com um caso em que o plenário aceitou votar uma lei estritamente dependente de um acordo internacional, não querendo conhecer e tendo recusado conhecer a alteração ipsis verbis do acordo condicionante, que era premissa fundamental.

Estas práticas favorecem o que chamo as “leis do quarto escuro”: leis que, em razão de um ou outro expediente, são produzidas fora do olhar do público e aprovadas sem que os próprios deputados, que as aprovam ou rejeitam em plenário, façam a mais pequena ideia do que é que estão realmente a votar.

3. Este é o aspecto mais grave da lei de financiamento dos partidos. É bem evidente que, banindo os mecanismos das “leis do quarto escuro”, a calamidade que este caso representa para o crédito dos partidos e dos políticos não teria acontecido: todos os excessos e os disparates que as cumplicidades de corredor favoreceram teriam sido parados à partida ou nos debates preliminares. O processo democrático não é só no final; nem só no princípio; tem que ser também “durante”. Aqui, falharam o princípio e o “durante”. O final, por isso, só podia ser desastroso. Assim aconteceu.

O líder do PS e primeiro-ministro comentou que nunca houve uma lei com um “consenso tão amplo quanto esta”. E é bem verdade: de um lado, um tão amplo consenso a favor em São Bento; do outro, também um tão amplo consenso de rejeição e violento repúdio na opinião pública. Só isto diz tudo. A Assembleia da República contra o povo, o povo contra a Assembleia da República. Na verdade, pior era impossível.

Estes procedimentos de ruminação legislativa em conluio anestesiam a crítica e a reacção, pois as coisas vão andando e vão passando: “primeiro estranha-se, depois entranha-se”. Mesmo quando surge um caso que sacode a habitualidade e sua modorra, tudo tende a soar como na frase antiga: “é normal dentro da anormalidade”.

Como se tratava de matéria dos seus dinheiros, os dirigentes partidários acharam provavelmente que era exclusivo de confraria. Montaram a salinha onde iriam construir a solução para os pedidos do Tribunal Constitucional e, já agora, para algumas pendências dos seus interesses. Fizeram-no com abertura a todos, quebrando mesmo a branca candura virginal do Bloco de Esquerda e furando a blindagem granítica do comité central do PCP. Concertaram que se fartaram, fazendo do Parlamento fabriqueta de burocracia partidocrática. Mas, neste caso, a paz dos cemitérios foi perturbada por o CDS – embora tendo estado no processo e aprovado, ainda, na generalidade – ter rejeitado as duas novidades mais controversas e funcionado como desmancha-prazeres do laborioso pacote. Valeram, ainda, duas peças de reportagem imediata do Público e da Lusa, que decifraram para a opinião pública o pacote bem codificado, votado num embrulho natalício de vasta, variada e maçadora papelada. Tirado o assunto do previsto bocejo, os tambores tocaram a partir de dois artigos de opinião: de Paulo Ferreira, no ECO, e Alexandre Homem Cristo, no “Observador”. A partir daí, soltaram-se os ventos. Como na história do Rei vai nu, basta um dizer e apontar, para todos ganharem consciência do que sempre estiveram a ver: o Rei vai nu.

Os dinheiros dos partidos não é matéria destes, mas questão nossa. O Presidente da República de nada sabia, embora o processo rolasse sigilosamente desde Março. O Bloco de Esquerda procurou rapidamente saltar fora. Os outros autores emitem um comunicado conjunto, tardio e ilusionista. O PCP mostra desnorte e sai sozinho a terreiro, recuperando críticas e discordâncias passadas. O PSD, com fortes responsabilidades na autoria parlamentar, fala a várias vozes, com os dois candidatos a líder demarcam-se publicamente. O PS assume e dá a cara. Comentadores dão sinais contrastantes: Francisco Louçã, da área do BE, procura doirar a pílula; Jorge Coelho e Marques Mendes, da área do PS e PSD, zurzem com dureza. Torna-se público que a quase totalidade dos deputados não faziam a menor ideia do que tinham votado, entre outros apontamentos caricatos do secretismo do processo.

Não culpem os populistas. O Rei ia, de facto, nu. Nem sequer em cuecas, como mostra a generalidade das ilustrações púdicas dos livros. Vai mesmo em pelota.

4. A questão essencial esteve no atropelo de quatro fases parlamentares, distintas e essenciais, do processo legislativo: iniciativa, generalidade, especialidade, votação final. O caso precisa de ser escrutinado ao pormenor, pois os engenheiros da burocracia sabem ser artistas para aparentar respeitar a forma, enquanto atropelam a razão de ser dos processos. Mas, olhando com sentido comum para as normas e os factos, tenho a certeza de que uma iniciativa apresentada num dia não pode, com seriedade, ser debatida e votada na generalidade e na especialidade dois dias depois, tudo a monte e a eito, coroando-se, na mesma hora, a votação final global.

Isto não é sério, nem credível. Sempre pensei que é formalmente constitucional. Por isso, além do veto do Presidente da República, achamos, na Associação Por uma Democracia de Qualidade, que a constitucionalidade dos procedimentos deve ser examinada: pelo Tribunal Constitucional, pela doutrina, pelos deputados eles próprios.

As exigências processuais, aliás, antes de constarem do Regimento, constam da própria Constituição – e, se constam da Constituição, é porque não interessam só ao Parlamento, mas constituem directamente garantias dos cidadãos. Não são normas para defender somente os deputados uns dos outros, as minorias das maiorias; são normas para defender os próprios cidadãos dos deputados – de todos os deputados, ainda que estivessem todos de acordo.

É preciso restituir a democracia à cidadania. O que, estou certo, só poderá ser conseguido pela reforma eleitoral que consiga dois resultados essenciais: um, restituir aos cidadãos eleitores o poder mais decisivo na escolha e eleição dos deputados; outro, restituir a estes deputados o senhorio pleno e genuíno sobre o funcionamento democrático e responsável do Parlamento. Entre outras coisas, em democracia, nunca pode haver “leis do quarto escuro”.

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